Mais um dia

Estaciono o carro, nunca no mesmo sítio
- Bom dia – cumprimento o mesmo arrumador que conheço há anos, a mesma roupa o mesmo ar de desespero.
- Bom dia, obrigado – responde sempre da mesma forma, com a mão direita imunda estendida à espera de uns míseros euros para matar o vício ainda antes da hora de almoço.
Contorno a esquina.
A rua tem sempre o mesmo cheiro característico do peixe fresco acabado de chegar da lota, o mesmo que se torna num fedor depois de umas horas na banca e da água sebenta jogada à praça pública, convertendo os paralelos de granito cinza numa passerelle imunda, onde abundam escamas de peixe e um pivete odioso.
A mesma porta sempre fechada, conduz-me a uma escadaria interminável, o mármore branco já gasto transporta-me às quatro paredes encardidas de uma sala sem uma réstia de luz natural, a marquise completamente encerrada turva ainda mais o casulo a que chamo de local de trabalho.
Cinco criaturas, num casulo com ar condicionado, oito computadores ligados uma produtividade de 30%, e uma emissão de qualquer coisa poluente nos 200%...
Entro, sento-me, ligo o PC vejo o mail, pego em meia dúzia de papeis espalhados pela secretária, coloco os phones e mergulho…enquanto as horas passam e não passam, trocam-se piadas que cortam o ambiente modesto da sala, e mais uma vez lá vou eu…e mergulho de novo.
Hora do desjejuo, o mesmo sitio as mesmas meninas…à coisas que nunca mudam. A esta hora o cheiro odiável do peixe agora torna-se repulsivo, as carrinhas vazias fedem a qualquer coisa menos a peixe fresco, e pingam, pingam aquela água fétida, obstruindo a rua, supostamente proibida ao trânsito, em fileiras caóticas.
A porta fechada, a escadaria, a sala, os mesmos cinco…e mergulho novamente…
Tiro os phones, encerro o PC, um “até amanha” seguro, desço a escadaria e atrás de mim ouço o bater da porta.
Contorno a esquina.
O cheiro já não se sente com tanta intensidade. O arrumador já não lá está, entro no carro, pé no acelerador rumo ao meu ninho…
Amanha é outro dia.